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6 de novembro de 2024

A digna despedida de Antonio Cicero

Que todos possamos, se quisermos, ter uma morte tão livre quanto a do poeta

FELIPE LIMA

Jornalista, é fundador da agência Leopoldo Electrical Group

Mesmo diante do risco de fazer com que esta coluna rapidamente se transforme em um obituário, não posso, conforme prometido no artigo anterior, deixar de falar sobre Antonio Cicero, morto na semana passada. Aliás, belamente morto na semana passada, se é que me dão licença para tanto.

Cicero, outro que não conheci, não frequentei e com quem não tive a oportunidade de tomar um chopp em algum fim de tarde na orla, enquanto o Hotel Marina acendia suas luzes, sempre me foi o tipo de intelectual que eu admiro e que, de certa maneira, busco ser. Cicero era um Imortal, importante dizer. Capaz de aliar uma produção acadêmica repleta de rigor filosófico e erudição com largos gestos de generosidade e elegância ao longo de toda a vida, não deixou, em momento algum, de ser também acessível, não só por meio de sua cristalina e deliciosa poesia, mas, acima de tudo, por sua produção enquanto letrista – um dos maiores da MPB – ao lado de sua irmã, Marina Lima, e de outros bons nomes do ramo.

Embora muito me encante a ideia de percorrer aqui a obra de Antonio Cicero e, por A + B, mostrar o porquê ele é mesmo um dos maiores de seu tempo, um dos grandes poetas de sua geração, deixarei isso com tantos outros que já o fizeram antes de mim, ao longo da semana e com muita competência, diga-se. Mas, antes de fecharmos este ponto, recomendo vivamente que leiam “Guardar”, (ed. Record, 1996, fora de catálogo, infelizmente. Alô, Record! Botem as máquinas para funcionar, vamos colocar essa pérola novamente nas prateleiras!) sua coletânea poética definitiva, que também traz suas principais letras musicais. Ali temos Cicero em toda a sua grandeza e maravilha. Leiam “Guardar”. (Link para download do PDF, já que está fora de catálogo)

“O Hotel Marina quando acende / Não é por nós dois / Nem lembra o nosso amor”

Bem, mas o que realmente me interessa tratar aqui é a morte de Antonio Cicero, que, como ele mesmo e tantos outros têm dito, o foi tão digna quanto sua vida. Cicero realizou um suicídio assistido – eutanásia – na Suíça, país em que a prática é permitida e muto bem legislada. Para mim, ter que defender aqui tal processo é algo tão ilógico quanto defender a legalização (e não só descriminalização) de todas as drogas, ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou o direito ao aborto ao tempo que for, pelo motivo que for. Para mim, são pontos absolutamente cristalinos, que perpassam única e exclusivamente pelas liberdades individuais de cada um de nós. Ou seja, é uma pena que ele tenha que ter ido para tão longe para dar cabo de sua vida da maneira que bem entendeu.

Antes de ir, Cicero deixou aquilo que estão chamando de carta de despedida. Embora eu adore cartas e as envie até hoje, dentro desse contexto, a saber, da morte programada e assistida, me soa um pouco como uma mera carta suicida, usualmente recheada de desabafo, dor e desespero que, embora tenha o seu valor e eu defenda o direito de cada um tirar a própria vida como bem quiser, estou certo de não ser esse o caso aqui. A começar pelo conteúdo, que não poderia ser mais claro, belo e lúcido. Como chamá-lo, pois? Um recado, uma mensagem, um manifesto, uma elegia, se tanto? Bem, realmente, não sei, mas faço questão de compartilhá-la aqui para que seja lida e saboreada linha a linha. É desse cara que estamos falando. Está tudo aí. Certamente, Cicero não poderia terminar melhor.

“Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”

Alguém se arriscaria a dizer que este não é um homem absolutamente lúcido e consciente de suas vontades? Ora! Esse é o maior exercício de liberdade que se há: morrer quando e como se deseja. Não quero aqui iniciar nenhum movimento, mas já é passada a hora de o Brasil repensar sua legislação a esse respeito. Pessoas com doenças terminais e quadros irreversíveis devem ser capazes de abreviar o seu sofrimento enquanto ainda podem tomar essa decisão. O Estado não tem absolutamente nada a ver com isso. Ou melhor, tem apenas que prover os meios necessários para que quem quiser assim fazer o faça com total dignidade.

Em nossa sociedade, infelizmente, ainda existe muito preconceito a esse respeito. A tal da religião – todas elas –, como sempre, atrasando o bonde da história. Reparemos que Cicero destaca seu ateísmo, fator preponderante para ir adiante com seu próprio destino. É inaceitável que deixemos de crescer e evoluir coletivamente enquanto sociedade por fatores místicos e unicamente individuais. Prova dessa caretice, relembremos, foi a crítica feita aos meios que divulgaram a inefável mensagem de Cicero, como se estivessem, de algum modo, alimentando uma vontade suicida que pudesse estar arraigada ao leitor desavisado. Ora essa! Ainda falta muito para nos tratarmos como adultos que somos.

Para encerrar, deixo de brinde para vocês uma participação de Antonio Cicero na Rádio Batuta, do Instituto Moreira Sales, onde ele lê 15 poemas de “A Rosa do Povo”, de Carlos Drummond de Andrade. Para ouvir de joelhos.

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