FELIPE LIMA
Jornalista, é fundador da agência Leopoldo Electrical Group
Eu não tolero musicais – seja no cinema ou no teatro –, premissa essa que, fosse eu um pouco menos abusado, me obrigaria a declarar-me impedido de cometer a presente crítica. Ainda assim, aqui estou, prestes a descarregar um caminhão de melancia podre sobre a cabeça de “Emilia Pérez” e seus responsáveis legais.
Outro dia, Teté Ribeiro, ao elogiar – sim, elogiar – essa mesma obra na Folha, disse algo que me serve perfeitamente bem: para algumas pessoas, musical é uma questão de ofensa pessoal. É isso mesmo. Para além do constrangimento provocado a cada cena, o musical – qualquer um, de “Cantando na Chuva” a “La La Land” – chega a ser ofensivo para mim.
Fundamental falar que, enquanto jornalista, sou treinado para analisar uma obra pelo que ela é. Ou seja, se a Karla Sofía Gascón é um ser humano horroroso, encoxa a mãe no tanque ou maltrata criancinhas com cancro, não muda em nada a minha avaliação. Tampouco há qualquer bairrismo. Torço, evidentemente, para “Ainda estou aqui” e o considero superior aos demais indicados, porém, tenho zero problemas que ele perca para “Anora”, “O brutalista” ou “Conclave”. São filmes bons, coisa de gente grande. O que machuca é perder para essa tourada babélica engendrada por Jacques Audiard.
Aliás, comecemos pela Torre de Babel que o filme é. Produção francesa, protagonista espanhola, coadjuvantes americanas – que se passam por mexicanas, bem como o enredo. De novo, zero problemas quanto a essas bobagens identitárias, de que o filme é francês e quer retratar um drama mexicano, ou que são pessoas de outra nacionalidade se passando por mexicanos, ou qualquer outra encrenca que tenham achado com a questão trans. O grande problema aqui é terem colocado essa gente para falar espanhol como se fossem nativos. Pior: terem posto o elenco para cantar em espanhol. É ridículo. É grosseiro. Ficou ruim e não faz sentido.
Uma coisa é colocar um ator americano interpretando um personagem americano que precise falar espanhol por qualquer coisa de seu. As falas soarão estranhas, com um forte sotaque, mas estaria dentro das regras da realidade. Agora, quando, por algum motivo alheio à minha compreensão, colocam atrizes estadunidenses para dançar, falar e cantarolar em espanhol como se nativas fossem, não pode ser nada além de zombaria para com o espectador – cuja inteligência, ressalte-se, é brutalmente vilipendiada ao longo dos mais de 120 minutos de película.
Sabe aquela coisa meio ridícula, de o Batman tornar-se irreconhecível usando sua máscara, que deixa metade do rosto à mostra? Pois é a mesma sensação com a personagem Emilia Pérez. Evidentemente, ela é uma mulher trans. Não restam dúvidas sobre isso em momento algum do filme, mas ninguém parece se atentar a esse detalhe, principalmente sua ex-mulher e seus filhos, que passam a conviver com ela sem nem desconfiarem tratar-se de seu ente querido, supostamente morto. Novamente, um atentado à inteligência do espectador, bem como quando ela ainda é o traficante homem, barbudo. É um personagem estranhíssimo, resultado de um péssimo trabalho de maquiagem e caracterização, que chamaria a atenção de qualquer um – principalmente em um ambiente de banditismo –, a começar por sua mulher – que, como acabamos de ver, parece mesmo ser bastante desatenta a essas questões fisionômicas. É grosseiro, fazendo parecer que nem se esforçaram muito.
Aqui seria o momento em que eu criticaria os trechos musicais – que ocorrem em profusão –, mas são tantos os problemas e é tão constrangedor que vou me ater a apenas dois pontos. O primeiro é que, em qualquer musical, a cantoria festiva emulando um diálogo soa ridículo por natureza e gera um mal-estar em quem assiste. Mas em “Emilia Pérez” é ainda pior, pois a cantoria se inicia sem prenúncio, em momentos absolutamente estúpidos e inadequados, debochando, mais uma vez, das faculdades mentais do espectador. Uma comparação seria se, em meio ao Jornal Nacional, sem mais nem porquê, William Bonner começasse a cantar enquanto lê alguma notícia. A sensação de incômodo, espanto e constrangimento seria a mesma.
O segundo ponto esbarra novamente na questão idiomática. Ficou ruim demais terem colocado a ótima Zoe Saldaña e a mediana e absolutamente desadequada para o papel Selena Gomez (pensando aqui, acho que o diretor resolveu apostar tudo no sobrenome delas) para cantarolarem de forma burlesca em espanhol. Na língua mãe já seria ruim, do jeito que foi, torna-se inominável.
Por fim – pois é, ainda não acabou – falemos do roteiro. Aliás, qual roteiro? Tem? Ter, não tem. Mas eles fizeram um puxadinho lá e deram esse nome. O argumento é bom, tem potencial. Se eu leio a sinopse (sem saber que é um musical babélico, obviamente), até acho que apostaria na ideia. Mas a impressão que fica é que Audiard se preocupou tanto com as danças e cantos que se esqueceu que havia uma história a ser contada, fios a serem amarrados. O resultado é uma historieta sem pé nem cabeça, cheia de furos de roteiro, erros de continuidade, atuações duvidosas… Aquele enxoval clássico dos desastres cinematográficos que, se restritos à Sessão da Tarde, não geram espanto, mas quando se tornam um jabuti no Oscar, preocupam.
Fato é que “Emilia” está lá e, pelo que temos visto por aí, tem chances reais e inexplicáveis de levantar algum caneco. Se a maravilhosa campanha de “Ainda estou aqui” e de Fernanda Torres em específico e o ocaso de Karla Sofía Gascón não falarem por si só e encerrarem logo esse surto coletivo, que o puro desastre que a obra é resolva de uma vez por todas essa situação.
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